No dia 29 de novembro, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu julgamento de Habeas Corpus impetrado por cinco presos por crime de aborto, previsto pelo Artigos 126 e 288 do Código Penal, que tipificam os crimes de aborto provocado e formação de quadrilha.
O Ministro Marco Aurélio, relator do pedido de Habeas Corpus, proferiu parecer no sentido de que não haveria necessidade de prisão preventiva, uma vez que os réus eram primários e não demonstraram intenção de obstruir o processo. No entanto, o Ministro Luís Roberto Barroso pediu vista e emitiu voto-vista, concluindo pelo deferimento do pedido de Habeas Corpus, adicionando à conclusão do voto do relator sua tese de que a Constituição Federal não recepcionaria os Artigos 124 a 126 do Código Penal, no caso em que o feto estivesse em gestação por menos de três meses.
Cabe esclarecer que os julgados comuns, como é o caso do Habeas Corpus, não geram efeito vinculante e não são obrigatórios para todos, mas apenas para as partes daquele processo. No entanto, verifica-se que o voto-vista aproveitou decisão sobre a não-prisão preventiva para fazer ativismo pró-aborto, num momento em que se está discutindo a permissão para realização de aborto em casos de Zica.
Os únicos argumentos utilizados pelo ministro para estabelecer o terceiro mês como base para o encerramento da vida intrauterina do nascituro foram (i) a viabilidade fora do útero, colocada em seu voto de forma genérica, sem fontes e embasamento clínico-científico, e (ii) o de que países desenvolvidos não tratam a interrupção voluntária da gravidez como crime até o terceiro mês de gestação. No entanto, copiar legislação de outros países anacronicamente e sem consideração dos fatores culturais e sociais é prática que denota falta de maturidade jurídica, considerada prejudicial à democracia por querer alavancar um suposto desenvolvimento à revelia da sociedade.
O Artigo 196 da Constituição Federal diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Alguns dos réus mantinham clínica clandestina de aborto, não submetida a nenhum controle sanitário e de procedimentos, fazendo cobranças por seus serviços à margem do ordenamento tributário e submetendo as mulheres a altos riscos de saúde. E tiveram o mesmo tratamento dado à gestante que em momento de desespero se submeteu a todos esses riscos, provavelmente sem saber de todos eles.
A Primeira Turma que seguiu o voto-vista utilizou essa frágil situação para tomar posicionamento sobre matéria que está sendo discutida pelo Congresso Nacional, extrapolando o princípio da divisão dos Poderes, pilar do nosso Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal, em seu Artigo 227, determina que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Entendemos que a motivação da decisão do STF proferida ontem, ainda que não gere jurisprudência sobre o assunto, fere os direitos do nascituro e não dá prioridade à vida deste frente aos direitos da mulher. Entendemos e defendemos as mulheres em todos os seus direitos. Justamente por isso, não podemos permitir que elas sejam submetidas ao engano, ainda mais vindo por meio de entes estatais.
A dúvida do ministro sobre a recepção dos referidos artigos do Código Penal está sendo tirada pelo Congresso Nacional, por meio da reforma do Código Penal, a qual está sendo amplamente debatida com a sociedade.
A tese de que o direito à vida do nascituro é variável conforme o estágio gestacional não encontra respaldo na medicina, uma vez que o desenvolvimento intrauterino varia de pessoa para pessoa, assim como ocorre na vida extra-uterina. Utilizar-se de dúvidas para embasar decisões jurídicas que incorram na eliminação de embriões humanos mostra pouca cautela em decisões que dependeriam de muita ponderação e motivação exaustivamente fundamentada acerca das consequências sociais das sinalizações de decisão dadas por nossos magistrados.
Também a tese da proporcionalidade não considera que se está comparando objetos distintos: a vida do nascituro versus o bem-estar da mulher, sem considerar todos os fatores envolvidos na interrupção voluntária de uma gravidez, sem pensar na situação em que a gestante se encontra, muitas vezes pressionada a abortar por pessoas que ela ama. Também ignora o fato de que os homens são afetados por decisões tomadas pelas mulheres num momento de desespero das quais eles sequer tiveram a oportunidade de participar.
Ademais, por não encontrar respaldo na nossa legislação atual, que garante a inviolabilidade do direito à vida (CF Art. 5º), a motivação dada pela primeira turma demonstra intenção de promover inovação legislativa por parte do poder judiciário, o que pode ser enquadrado no Art. 49, XI, da nossa Carta Magna, que estabelece que cabe ao Congresso Nacional zelar pela preservação da sua competência legislativa. Assim, a mera criação de uma comissão especial para analisar a legislação sobre aborto no país não basta, é necessária a aprovação do PL 4754/2016, que “Tipifica crime de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a usurpação de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.”
Pelo exposto, a motivação dada à decisão sobre o HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO é digna de repúdio, por ferir o respeito ao direito à vida do nascituro e a preservação da dignidade e saúde da mulher, facilitando que os profissionais da clínica clandestina de aborto continuem a explorar mulheres em situação de vulnerabilidade, respondendo em liberdade por crime tipificado.